Bolsonaro: A linguagem da discórdia
Um célebre aviador e escritor francês afirmou ser a linguagem perene fonte de mal-entendidos. Pura verdade. Entretanto, não é menos verdadeiro que se trata do recurso de que dispomos para tecer nossas relações sociais. Daí que ruim com a linguagem, pior sem ela.
Com o verbo fazemos amigos e urdimos inimigos, se acaso os temos. Ancorada na obviedade, a sabedoria das culturas há muito ensina prudência e cuidado com aquilo que se diz. Essa era a primeira lição que os astecas davam aos seus filhos. Os construtores de Teotihuacán criaram um processo educacional que exigia responsabilidade com o que sai das nossas bocas. A criança crescia ouvindo dos pais, o mesmo conselho que estes haviam ouvido dos pais dos seus pais: seja impecável com sua palavra! Por certo hoje diriam: seja impecável com sua comunicação.
A ideia freudiana até hoje se mantém 100% vigorosa – o que dizemos e como dizemos (o semblante, o gesto, a postura, o comportamento) expõem mais de nós do que do conteúdo que transmitimos. Falar é se expor, e se expor é revelação. Moldado na cultura corporativa castrense, o capitão Bolsonaro mostra nas suas falas a rigidez típica da caserna. Pretende que a sociedade civil se comporte dócil como um pelotão obediente e disciplinado – mesmo tendo ele, o próprio, o currículo farto de desobediências e indisciplinas.
As palavras do presidente mostram sua insuperável dificuldade de lidar com diferenças e discordâncias naturais do convívio democrático. O Brasil não é um quartel, e os cidadãos brasileiros não são soldados. Ao contrário, a sociedade é plural e está acima do castro; pois a mais nobre missão militar em tempos de paz é servir a cidadania. Por isso a Constituição deveria vetar aos fardados, da ativa e da reserva, qualquer atuação capaz de macular a Corporação com as paixões, benefícios e interesses da política. Ao cooptar centenas de militares para o seu governo, Bolsonaro prestou um gigantesco desserviço às Forças Armadas. A conta dessa nefasta fatura é altíssima e não será fácil para o país pagá-la.
A epígrafe do mestre chileno parece simples, mas nada tem de rasa. Para enfrentar e vencer a tragédia anunciada que se abate sobre nós, é necessário um discurso que promova pontes e expresse empatia. Mas Bolsonaro não sabe fazer isso. Não sabe. Sua linguagem tosca e seu humor grosseiro semeiam a discórdia. Até os que acreditam em Papai Noel já se deram conta de que o homem que afirmou, em mais de uma ocasião, minha especialidade é matar (sic), não está capacitado para defender a vida.
O capitão tem um modelo mental binário e simplório. Não sou eu quem o diz; é ele mesmo, ao dividir os brasileiros entre “nós e eles”, “democratas e comunistas” e “patriotas e vermelhos”. Não existe espaço para matizes. É como se conviver com a crítica, respeitar a diferença, aplaudir o pulo fora do quadrado, o conhecimento, a inovação fossem anomalias perniciosas – quando sabemos que juntas e combinadas, lúcidas e equilibradas, essas qualidades constituem a última esperança de sobrevivência da nossa espécie.
Política é a arte de criar condições para que convivam, de modo apaziguado e colaborativo, igualdade e diversidade. Não importa de qual partido seja, a tradição democrática republicana exige que a fala do mandatário eleito proponha a cicatrização das feridas (abertas no calor dos discursos inflamados) e o final dos confrontos. Nos Estados Unidos o ex-presidente Trump rompeu esse costume; e aqui seu pupilo brasileiro tratou de imitá-lo.
Se analisarmos as falas do capitão Bolsonaro após 1º de janeiro de 2018, veremos que ele não encerrou sua campanha eleitoral. Em vez disso, prosseguiu discursando para seus acólitos e incentivando cizânia. Outra vez, não sou eu quem o diz; é a forma e o conteúdo da sua linguagem. Semana passada, dirigindo-se aos jovens formandos de uma escola militar, afirmou com veemência: “Jamais confiem na imprensa; os jornalistas sempre estarão contra vocês!”
Bolsonaro desconhece outra maneira de falar. Repito: desconhece. Seus rompantes não são de eloquência, são de descontrole emocional. Após três anos de governo, o capitão persiste com sua paranoia persecutória segundo a qual “quem não concorda comigo, está contra mim”.
Considere que o presidente jamais pediu desculpas ao país por ter chamado de “gripezinha” a pandemia que matou e está matando milhares de cidadãs e cidadãos brasileiros. Ninguém com grau mínimo de altruísmo expressa desprezo pela dor de pessoas e famílias, dizendo de forma impassível: “A morte é o destino de todos nós!” Em pleno colapso sanitário, ele declara publicamente seu descrédito nas vacinas, se recusa a usar máscara, causa e incentiva aglomerações, cumprimenta idosos com abraços, ridiculariza os cuidados preventivos chamando-os de mimimi, frescura e falta de coragem para enfrentar o vírus (sic)… Em meio a uma brutal escalada de mortes, números estratosféricos que assustam o mundo, não vemos um único gesto de solidariedade; nem uma expressão facial de tristeza e compaixão; nem digo uma mínima lágrima – já que machos não choram…
Se você não é robô, se tem um pingo de sensibilidade, me responda: que tipo de criatura é essa?
Alexandre Henrique Santos
Meu nome é Alexandre e me dedico profissionalmente ao coaching de vida e aos temas comunicação e empatia. Minha missão é facilitar processos de desenvolvimento pessoal e interpessoal. Sou apaixonado pelo que faço; e após quase 4 décadas de prática aprendi a fazer bem.
Outros artigos
A democracia e os 25%
Tenho lido artigos, assistido lives, entrevistas e ouvido diversas análises sobre esse percentual do eleitorado – algo em torno de 25% – que ainda não conseguiu perceber o que realmente está em jogo na próxima eleição. Essa significativa fatia de brasileiros adultos e votantes, seja por ignorância, baixo Q.I. ou pura má fé, acredita que o pleito que se aproxima apenas elegerá Lula ou reelegerá Bolsonaro. Não, não será só isso. As urnas eletrônicas de outubro, sim elas, dirão se escolhemos a civilização ou fincaremos estacas no atoleiro da barbárie. A disputa será entre democracia e fascismo.
Sobre somar e dividir.
Texto sobre as eleições brasileiras
Pior do que um vírus
A comparação é estúpida, reconheço; mas quiçá, a esta altura do genocídio e da CPI do Covid-19, não haja outra melhor. A cifra de cerca de meio milhão de mortos parece responder ao plano que foi posto em prática de modo escancarado, a céu aberto: a tal da imunidade de rebanho. E os que não se opuseram a esse desastre nacional anunciado – nos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Militar – são cúmplices, por ação ou por omissão. Perdemos para o negacionismo, para a negligência na compra de vacinas e a ausência de uma política sanitária nacional – única, coerente, efetiva e rápida. A questão vai muito além da perda irreparável de cidadãs e cidadãos brasileiros, velhos e jovens. Estamos assistindo à tentativa de diluir os fundamentos da nossa democracia e do Estado de Direito.